quarta-feira, 24 de junho de 2009

choro bandido, chico buarque e edu lobo.

Eu tava pra fazer a análise dessa música logo depois de Samba de uma nota só, em meados de fevereiro.
Choro bandido sempre me fascinou pela riqueza melódica e profundidade da letra. Já tinha até umas coisas na cabeça pra escrever mas que se perderam dentre outras que entraram quando voltaram as aulas na faculdade.
"Se perderam".
Escutei ela agora pouco e as achei rapidinho e resolvi voltar aqui pra cumprir o compromisso comigo mesmo.

 Edu Lobo e Dori Caymmi - Choro Bandido



Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons.

Mesmo porque as notas eram surdas,
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons.

E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
"Você nasceu para mim."
"Você nasceu para mim..."

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido,
Minha musa, vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação!

Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão.

E eis que, menos sábios do que antes,
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
"...Me leve até o fim."
"Me leve até o fim..."

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons!



Choro Bandido foi composta por Chico e Edu pra uma peça de Augusto Boal, que faleceu recentemente, chamada O Corsário do Rei, em 1985. Como em todas as parcerias deles, Chico escreve e Edu musifica. Não conheço essa peça de Augusto então não vou entrar em detalhes na relação música-peça. Vou olhar como uma música solta.

O que baliza a canção do começo ao fim é um amor. Mais precisamente, a sedução. Uma sedução apelativa, naturalmente, e até infalível.

Acredito que o começo da música - e outras partes - definirão bem essa minha idéia de apelativa e infalível.
Perceba que a primeira estrofe aparece um alguém que se declara, de um modo bem vago, falso.
Essa falsidade assumida é simplesmente a falsidade assumida por um sedutor, que, ao decorrer da letra, vai usando, de certa forma, de discursos enganosos a fim de seduzir. Ser falso pra seduzir não é nenhum pecado, não?
Isso é confirmado com a primeira estrofe:

"Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo miseráveis os poetas
os seus versos serão bons."


Não importa que os cantores (sedutores) sejam falsos, assim como eu. As suas canções (palavras/intenções) não serão afetadas por isso e sempre serão bonitas. Não leve em consideração o quão miserável e repugnante seja um poeta, pois, mesmo assim, os seus versos serão bonitos. Considero essa como uma das temáticas destacáveis da música.

Pra que a música não seja apenas mais uma música, um clichê, Chico permeia toda a letra com concessões (frases começando com "mesmo que") e figuras da cultura clássica, mitologia e afins, para serem feitos paralelos com o processo de conquista do sedutor, colocando como protagonisa o deus grego Hermes.
Vou falar um tiquinho dele e de outros mitos que aparecerão pra fazer valer a minha cara aquisição do Livro de Ouro da Mitologia.

Na segunda estrofe ele - Hermes - dá o ar da graça:

"Mesmo porque as notas eram surdas,
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons."


A princípio, perceba, escutando a música, que a aparição de Hermes se dá com uma clara alteração da melodia, de modo a destacá-lo.

Hermes inventou a lira (foto), quando criança, um instrumento ligado a canto, poesia e porque não, sedução. Ele teve a tal idéia ao ver numa tartaruga algo mais do que um mero animal, fazendo do seu casco e de tripas de uma ovelha o instrumento. Achei na rede um trecho em que Homero escreve sobre isso, no seu Hino a Hermes. Leia:

"Ajustou, na medida, umas talas de cálamo exatas,
E, do dorso através e da pele, enfiou no quelônio
E, conforme pensava, uma pele de boi esticou
E dois braços extremos dispôs, por travessa ajuntados.
Sete cordas de tripa de ovelha estendeu harmoniosas.
Ao depois de fazê-lo, tomou do amorável brinquedo
E co’um plectro uma a uma provou cada corda, aos seus dedos
Ressoava tremenda"


O número das tripas (7) talvez não tenha sido à toa, não?




O interessante dessa estrofe é perceber que ela continua a idéia da primeira ("mesmo que eu faça errado estou fazendo certo"), quando Hermes mata dois animais, com fins artísticos, de modo a tirar a surdez das notas e animar todos os sons.
Chico justifica esse ato de Hermes como um ato de um "sonso e ladrão"!
O 'sonso' é o adjetivo mais relevante no tocante à música. Já o 'ladrão' tem outra história.
Reza na mitologia que Hermes, ainda recém-nascido, roubou os bois de Apolo e, quando interrogado a respeito, negou piamente o ato de uma maneira muito persuasiva. Não é à toa que Hermes, dentre várias atribuições, é considerado o deus do ladrões, ou melhor, dos que fazem trabalhos secretos na calada da noite.
E, por fim, é assim que se tem a imagem do deus Hermes: sonso, ladrão, enganador, fingidor, sedutor, que será explorada no decorrer da letra.


A terceira estrofe - que é até difícil separá-la das duas anteriores, chamando-a de terceira - evidencia bem o poeta sedutor por trás de tudo:

"E daí nasceram as palavras
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu pra mim.
Você nasceu pra mim
."


Foi a partir da invenção da lira que as palavras usadas pelo sedutor, suas seduções, suas músicas e poesias nasceram.

Então, chega-se, ao meu ver, à mais simples e inteligente relação feita na letra com a mitologia, a quarta estrofe:

"Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido,
Minha musa, vai cair em tentação.
Mesmo porque estou falando grego com sua imaginção."


Aqui está retratada a imagem das Sereias, mais precisamente dos seus cantos e a de Ulisses.

Reza na mitologia, que os navegadores escutavam em alto e bom som o canto das sereias quando estavam em alto mar, passando por uma ilha do Mediterrâneo. Seduzidos eles iam atrás das belas melodias e vozes que ouviam. Ao chegarem na ilha, seus barcos colidiam com os recifes e naufragavam, sendo devorados pelas sereias logo após.
Ulisses foi um navegador que sobreviveu aos cantos se amarrando no mastro de seu barco, para não ir de encontro às sereias, e ordenando toda sua tripulação a tampar os ouvidos com cêra.

É nessa estrofe que o sedutor da música coloca o seu discurso como algo mais forte que o canto das sereias.
O que simnplesmente se quer dizer é:

"Minha futura seduzida, mesmo que você faça como Ulisses e feche seus ouvidos, você não resistirá à minha tentação."


Genialmente, Chico nos confirma todas as idéias usadas na letra, ao escrever esse pedaço:

"Mesmo porque eu estou falando grego com sua imaginação."

Nesse momento, é como se saísse o sedutor de cena e entrasse o escritor (Chico) falando diretamente para nós, ouvintes, que ele está falando em grego com o nosso imaginário.
É interessante que fica dúbio isso: entende-se a expressão "falar grego", de que quem ouve nada entende e entende-se "falar grego" como falar sobre o grego.

Sem sair do ambiente grego, Chico agora nos mostra, através do sedutor, mais dois pontos da mitologia: O labirinto de Dédalo (minotauro) e o adivinho de Tirésias. Perceba:

"Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
."


O labirinto foi criado para moradia do Minotauro, fruto da traição da rainha Pasífae com um touro vindo das águas, com Minos.
Já Tirésias foi um homem cego que ficou conhecido como o maior vidente da mitologia grega.
Essa estrofe fala, em outras palavras, que:

"Mesmo que você fuja do seu sedutor dentre lugares complicados e escuros (labirintos e alçapões), saiba que eu, poeta (sedutor), bem como Tirésias, posso vê-la e prevê-la."

Depois de tanta lábia, eis que, FINALMENTE, a seduzida se rende, perto do final da música, na penúltima estrofe:

"E eis que, menos sábios do que antes,
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
"...Me leve até o fim."
"Me leve até o fim..."
"


Portadores de, então, menos sabedoria que antes, os lábios, já ofegantes de tanta vontade, se renderão. Porém se renderão com a condição de eternidade.


"Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons! "


Esta última estrófe, não menos importante, apenas conclui a idéia já tão batida durante toda música, quando coloca o sedutor frente à seduzida, dizendo que...

...Mesmo que os romances sejam assim como o nosso, conquistado por algumas falsidades, não importa, não. As nossas canções nunca deixarão de ser bonitas. Aliás, a minha canção, a minha sedução, não deixará. Mesmo eu sendo errado ao te seduzir assim, o meu amor por você não deixará de ser bom e nem o seu. Ou melhor, o nosso amor não deixará.

Viva Chico e Edu!
E parabéns atrasado pra Chico que completou 65 anos dia 19 passado.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

samba de uma nota só, tom jobim e newton mendonça.

 Tom Jobim e convidados - Samba de uma nota só


Samba de uma nota só

Eis aqui este sambinha feito numa nota só.
Outras notas vão entrar, mas a base é uma só.
Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer.
Como eu sou a conseqüência inevitável de você.

Quanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada,
Ou quase nada.
Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada,
Não deu em nada.

E voltei pra minha nota como eu volto pra você.
Vou contar com uma nota como eu gosto de você.
E quem quer todas as notas: ré, mi, fá, sol, lá, si, dó.
Fica sempre sem nenhuma, fique numa nota só.


Mais uma grande parceria entre Jobim e Mendonça.
Um sambinha, criado em 1960, moldado em uma nota só.

Mendonça foi um dos maiores parceiros de Tom no início da Bossa. Apesar de sua morte muito precoce em 22 de novembro de 1960 com 33 anos, no ano da composição de Samba de uma nota só, ele deixou, como letrista, quatro músicas significativas pra Bossa e pra decolagem da carreira de Tom: Desafinado, já aqui analisada; Meditação; Discussão e o seu Samba de uma nota só.

Os dois conseguem brincar de forma inteligente e com muita maestria com notas que entram e saem, obedecendo à letra. Eles mostraram como fazer algo genuinamente brasileiro, no estilo, claro, Bossa Nova.

Essa música é tida, como inúmeras outras da Bossa, como algo perfeitamente arquitetado.
Tudo o que se passa na música, na melodia, acontece na letra e vice-versa.
Perceba logo no primeiro verso:

"Eis aqui este sambinha feito numa nota só.
Outras notas vão entrar, mas a base é uma só.
Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer.
Como eu sou a conseqüência inevitável de você."


Escute ela.
Perceba que as duas primeiras frases de verso são cantadas com apenas uma nota, obedecendo ao que se fala nelas.
Na segunda frase ele anuncia o que está por vir: "Outras notas vão entrar, mas a base é uma só"

Então, entra a outra nota, após o prenúncio e como uma consequência do que ele acabara de dizer na letra:
"Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer"

O refrão, se é que se tem refrão essa música, é a punhalada nas músicas carentes de qualidade, cantado subindo e descendo na escala do acorde em questão, mostrando de certa forma a quantidade de notas que estão à disposição do compositor mas que não são usadas.
E ele utiliza toda a escla de notas do seu acorde no exato momento em que a letra diz:
"Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada,
Não deu em nada."


No terceiro verso não é diferente.
A música volta pra nota inicial, no momento em que se fala na letra que o cidadão irá voltar pra sua mulher.
"E voltei pra minha nota como eu volto pra você."
Newton ainda faz uma adaptação na "ordem" da escala (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si), colocando o dó no final pra que rime com o "só" da última frase, cantando todo o verso em uma única nota.

Eles dão uma aula de como fazer uma música de verdade, com relevante complexidade de composição, uma rica melodia e com uma letra que ainda fala de amor.
Samba de uma nota só é uma facada no banal, porque aliás...

"Quanta gente existe por aí que fala fala e não diz nada, ou quase nada, já me utilizei de toda escala e no final vai dar em nada... ou quase nada."

Espetáculo de Tom Jobim e Newton Mendonça.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

carta do tom, tom jobim, chico buarque, toquinho.




Carta do Tom

Rua Nascimento Silva, 107
Eu saio correndo do pivete
Tentando alcançar o elevador

Minha janela não passa de um quadrado
A gente vê Sergio Dourado
Onde antes se via o Redentor

É, meu amigo
Só resta uma certeza
É preciso acabar com a natureza
É melhor lotear o nosso amor


Eis a resposta que Tom e Chico escreveram em 77 para a Carta ao Tom 74, de Vinícius e Toquinho.
A melodia permanece a mesma.
A referência à violência já emergente na cidade também, como se vê logo no primeiro verso quando Tom corre de um moleque de rua em direção ao elevador de seu prédio.
O concreto ainda protagoniza outro verso na resposta de Tom:

Minha janela não passa de um quadrado
A gente só vê Sergio Dourado
Onde antes se via o Redentor


Na análise da Carta ao Tom, fiz um comentário sobre o engenheiro-carrasco Sérgio Dourado. Além dele tapar o Cristo Redentor e o Céu, agora, ele, por conseguinte, tornou a janela do apartamento do Tom um mero quadrado.

Chico gostava de poetisar as janelas em algumas de suas músicas (Januária, por exemplo). Era um lugar de observação, de ver o que acontece da parede pra lá.
Eis, talvez, onde foi a participação de Francisco na escrita.

Tom era famoso, no âmbito da composição, por ser uma pessoa exageradamente perfeccionista, insatisfeito, porém muito transigente.

Roberto Menescal comenta no documentário Coisa Mais Linda que sempre que compunha alguma melodia nova ia logo mostrar pro Tom.
"Tom, escuta."
E tocava a melodia acompanhada sempre de um "larárá" na voz.
Daí Tom nem sempre gostava dos acordes, da sequência dos acordes ou do sei lá o que.
Porém Ele nunca falava:
"Roberto, isso tá horrível. Roberto, não gostei desse último acorde"
Não conseguia falar. Ele simplesmente ia lá no seu piano, tocava de um jeito diferente e falava:
"Opa, errei. Errei, não foi? Ok, vamos denovo."
E ficava errando incansavelmente, propositalmente.
Até que, depois de algumas erradas, Menescal comentava:
"Tom, erra denovo, por favor."
Aí Tom errava... e Roberto dizia:
"Rapaz, gostei desse seu acorde 'errado'. Vou trocar o meu por ele."

E assim Tom acabava sempre metendo sua colher nas composições alheias com esse jeitão dele.

Falando nisso, perceba que no vídeo acima Tom troca o "Sérgio Dourado" por "cimento armado", que até em divisão poética são iguais, com 5 sílabas.

"Sér / gio / Dou / ra / do"

"Ci / men / to ar / ma / do"

Não sei se por mania de mudança, perfeição ou se houve algum problema com o engenheiro.

A resposta termina com a indignação Deles regada de um bom sarcasmo:

"É, meu amigo
Só resta uma certeza
É preciso acabar com a natureza
É melhor lotear o nosso amor"


Precisa falar mais alguma coisa?

Um espetáculo de Tom, Chico e Toquinho.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

carta ao tom 74, vinícius de moraes e toquinho.

(Para o amigo Felipe)



Carta ao Tom 74

Rua Nascimento Silva, 107
Você ensinando pra Elizeth
As canções de 'Canção do Amor Demais'
Lembra que tempo feliz

Ah! que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor
Doesse em paz

Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse rio de amor que se perdeu

Mesmo a tristeza da gente era mais bela
E além disso se via da janela
Um cantinho do céu e Redentor

É meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor

Eis a famosa cartinha do poetinha musicada por Toquinho escrita pro Tom. Ela tem um quê de saudosismo fortíssimo e é cheia de esperança.

A primeira coisa interessante a se notar é a introdução da música. Não é novidade pra nenhum admirador da Bossa, não? A introdução dela é praticamente idêntica à introdução de Corcovado, de Tom Jobim, claro, pra dar um tom de Tom na música. A única diferença é o final que as duas melodias tomam: a de Corcovado termina em tom menor e do Toquinho cai em tom maior no final, deixando-a mais sorridente.

O saudosismo da música aparece no primeiro verso quando Vinícius fala da rua carioca em que Jobim morou durante bom tempo e que foi palco de criação de várias obras dele (Corcovado, por exemplo) e também um "berço" alternativo da Bossa.

E foi no apartamento da Rua Nascimento e Silva, nº 107, onde Tom mostrou pra Elizeth Cardoso a canção Chega de Saudade, analisada anteriormente, que mais tarde seria a faixa destaque de seu disco "Canção do Amor Demais". Aliás, vale lembrar que esse disco foi o primeiro rascunho da Bossa Nova, já que contou com o violão de João Gilberto e com a própria Chega de Saudade.

E a exaltação de um passado não muito distante (uns 20 anos atrás) continua com Vinícius escrevendo que, Lembra, Tonzinho, que tempo feliz? Que saudade daquela Ipanema tranquila, inspiradora por demais.
É óbvia a referência aos tempos atuais de violência na Cidade Maravilhosa, contrastando com os de antigamente.
Naquele tempo o amor quando doía, doía em paz.

Como falar em Ipanema e não recordar da Garota que vem e que passa, com um doce balanço a caminho do mar?
Ela aparece logo na próxima estrofe:

"Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse rio de amor que se perdeu"


Tom foi um grande amante da natureza e de toda a sua(natureza) poesia. Ele via poesia em tudo. De uma fonte de água na terra jorrando a um vôo de um urubu.

Ele, junto com Vininha, não imaginava a que ponta a cidade turvaria e que todo aquele Rio (de Janeiro) de amor se perderia em meio a tanto concreto. Concreto esse que é o protagonista do verso

"Mesmo a tristeza da gente era mais bela
E além disso se via da janela
Um cantinho do céu e Redentor"


Vinícius escreveu isso por cusa da volta frustrada de Tom de Nova Iorque, quando Ele se deparou com os vários prédios que a construtora Sérgio Dourado havia construído perto do seu, tapando a vista que ele tinha pro Cristo Redentor e até mesmo pro Céu, da varanda de seu apartamento.

E a música termina com uma frase belíssima do poetinha:
"É preciso inventar denovo o amor."
Espetacular.
É preciso inventar denovo toda a poesia arrodiava os cariocas da década de 50 e 60.
É preciso inventar denovo o amor tão esquecido nos tempos de verticalização da Cidade Maravilhosa.

Não termina aqui, não. Tom, Chico e Toquinho fizeram a "Carta DO Tom", que é uma resposta linda à "Carta AO Tom".
Deixo pra próxima postagem.

Um espetáculo de Toco e Vinícius.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

desafinado, tom jobim e newton mendonça.




Prelúdio da letra:

Quando eu vou cantar, você não deixa
E sempre vem a mesma queixa
Diz que eu desafino, que eu não sei cantar
Você tão bonita
Mas sua beleza também pode se enganar.

Letra:

Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isso em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu...

Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, que isto é muito natural

O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão

Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar, viu!
Você com a sua música esqueceu o principal:

Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
É que no peito dos desafinados
Também bate um coração.


Desafinado, escrita no final da década de 50, bem como Chega de Saudade, definiu também a Bossa.
Segundo o próprio Tom, ela é uma espécie de crítica à especialização da música, à música bem feitinha, aos padrões de composição até então seguidos.

Pra análise da música, vou assumir uma metáfora que não sei se foi intencional ou não do Newton Mendonça na letra: a relação conflituosa de um casal apresentada na música seria a relação entre o músico bossanovista e os críticos de música da época.

A crítica aparece já no prelúdio que, diga-se de passagem, infelizmente, é raramente executado.

"Quando eu vou cantar, você não deixa
E sempre vem a mesma queixa
Diz que eu desafino, que eu não sei cantar
Você tão bonita
Mas sua beleza também pode se enganar
."


A parte em negrito é o primeiro contato conflituoso entre o músico e o crítico.
A bossa nova incorporou muito a dissonância do jazz. Isso, pra ouvidos leigos - ou desacostumados -, dava a impressão de que havia notas destoando, que havia uma desafinação. E foi daí que surgiu o nome da música.
A metáfora da relação aparece mais forte quando a Beleza da mulher do músico que desafina se torna metaforicamente a inteligência, o intelecto do crítico.
Perceba:

"Você tão bonita
Mas sua beleza também pode se enganar"

"Você tão inteligente
Mas sua inteligência também pode se enganar"

E realmente se enganava. Não havia desafinação nenhuma.

Na primeira frase da música aparece um detalhe genial.

"Se você disser que eu desafino amor"

Justamente na sílaba "De" de Desafino e na palavra "amor", Tom dá uma "desafinada" proposital, para que o ouvinte entre - ou não - na idéia da música.
Em termos técnicos, as notas "afinadas" ou "normais" dessa frase seriam essas:

B -C# D# E D# -C# - - -B -C# E - - -C#
Se você disser que eu de sa fino amor

Porém, Tom a musicou assim:

B -C# D# E D# - C# - - - C -C# E - - -C
Se vo cê disser que eu de sa fino amor

Essa tal desafinada dele foi simplesmente um aumento de meio tom na sílaba "De" e uma queda de meio tom na palavra "amor".
Trocas essas que foram devidamente "corrigidas" aumentando em meio tom a décima primeira do acorde que as acompanha: passou de F#7 para F#7(11#).

O verso termina com o homem falando pra mulher - ou o músico falando pro crítico - que somente privilegiados possuem um ouvido igual ao seu, ao ponto de conseguir notar essa quebra na música. E ele, mero músico, possui apenas o ouvido que Deus lhe deu e que tal ouvido se agrada com esse novo estilo musical chamado Bossa Nova.

No segundo verso aparece denovo uma crítica ao crítico:

"Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, que isto é muito natural"


Maravilha, não?

Mesmo você insistindo em dizer que meu jeito de compor é totalmente anti-musical, anti-padrões, eu devo te dizer que Isto é Bossa Nova, meu amigo, tudo isto é muito natural...

A tal Rolley-Flex, mostrada no 3º verso, era uma máquina fotográfica daquelas que todos queriam ter.
Quando o homem fotografa sua mulher, na hora da revelação o que se revela é somente a ingratidão dela em não perceber sua real intenção musical.

Eu, sinceramente, não gosto muito do último verso da música.
Ele é bonito, "No fundo do peito dos desafinados também bate um coração, mesmo que tímido, calado". Ficou meio piegas.
Eu acharia melhor que houvesse uma continuação da insatisfação do músico criticado. Não me atrevo a palpitar um outro final.
Porém, nada que tire toda a genialidade dessa obra.

Um espetáculo da música de Tom e da letra de Newton.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

chega de saudade, tom jobim e vinícius de moraes.

 Joao Gilberto(Tom Jobim/Vinicius) - Chega de Saudade


Vai minha tristeza,
e diz a ela que sem ela não pode ser.
Diz-lhe, numa prece
Que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade, a realidade é que
sem ela não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai.

Mas se ela voltar,
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei
Na sua boca,
dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim.
Não quero mais esse negócio de você longe de mim...

Essa é a versão de João Gilberto do disco Chega de Saudade que comentei no último post.

Bem, eu divido essa música em 3 partes: introdução, modo menor e modo maior(ou bossa nova).

Introdução.

No livro Chega de Saudade, de Ruy Castro, há uma passagem falando que Tom se inspirou num chorinho que sua empregada costumava assobiar quando foi começar a compor Chega de Saudade. Eu vejo uma influência exagerdamente forte do Choro em todo música, principalmente na introdução. Escute.
A introdução, poeticamente, está representando a fase da melancolia, da tristeza musical que antecede a Bossa Nova.

Modo menor.

A letra começa de um modo triste e sem esperanças, acompanhada por uma melodia em tom menor (ré menor, originalmente) e embalada pela introdução tão triste quanto.
Perceba isso na primeira estrofe quando Vinícius escreveu que: vai lá minha infinita tristeza e diz a ela que eu não posso nada ser sem ela... diz a ela, religiosamente, que ela volte urgentemente porque eu não posso mais sofrer... não aguento mais saudade, pois sem ela não há paz, beleza, só há a melancolia que não sai de mim.
E ainda toda essa tristeza representa a fase antecessora da Bossa.

"Vai minha tristeza,
e diz a ela que sem ela não pode ser.
Diz-lhe, numa prece
Que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade, a realidade é que
sem ela não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai."


Modo maior.

Então, a música dá uma virada magnífica. De um tom menor passa para um tom maior (ré menor para ré maior), acompanhada agora por uma letra repleta de alegria e esperança (Vale ressaltar que, musicalmente, tons menores trazem uma música triste e tons maiores uma música alegre). É aqui que começa a Bossa nova! É nessa troca de astral musical que quebra-se com os antigos padrões musicais para se mostrar uma nova fase linda da nossa música. A bossa nova se inicia aos 55 segundos dessa música!

Vinícius escreve agora que: aaah, se ela voltar que coisa linda seria. Quantos peixes existem no mar? Dane-se quantos. Eu darei mais beijinhos em você do que essa tal quantidade. Teu lugar é nos meus braços, regado a milhões de abraços e beijos. Tudo isso pra nunca mais você fugir de mim, nunca mais viver longe de mim.

"Mas se ela voltar,
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei
Na sua boca
,
dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim.
Não quero mais esse negócio de você longe de mim"...


Perceba que nessa última parte - na parte bossa nova - aparecem as identidades do nosso poetinha e do nosso maestro soberano.
90% da obra de Tom tem a mata atlântica no meio, tem a natureza, segundo o próprio. Perceba, então, o mar e os peixinhos na letra.
Vinícius adorava usar de diminutivos em suas músicas, poemas, sonetos, modos de se referir a alguém. Perceba os "peixinhos" e os "beijinhos".

Outro detalhe interessante. A música começa mostrando a distância entre as duas pessoas e exatamente no final da música essa distância é anulada com um: "Não quero mais esse negócio de você longe de mim"

É impressionante como após 50 anos da composição dessa obra ela permanece surpreendente e intocável.

Um espetáculo de Vinícius e Tom.

prelúdio a chega de saudade.

Comecei a escrever mas parei.
Não tem como fazer uma análise de Chega de Saudade sem antes falar um pouquinho da história da Bossa Nova. Mas bem pouquinho mesmo.

Há exatos 50 anos e 5 meses era lançado um compacto do violonista baiano João Gilberto que trazia a Chega de Saudade entre suas faixas. Ele já havia participado, tocando seu violão, uns meses antes no disco da Elizeth Cardoso, Canção do Amor Demais, que também já trazia a música, mas eu prefiro ficar do lado de que foi no LP de João que a bossa foi concebida, que a bossa foi definida.

Antes desse disco, era tocado muito o samba e o choro. Década de 30, 40. Esses gêneros pediam instrumentos de alto volume e dançantes como reco-reco, pandeiro, cavaquinho, surdo, cuíca e etc. Além dos instrumentos, os cantores desses gêneros também tinham essa característica do cantar alto, alegre, contagiante.

Em meados da década de 50, um grupo de jovens músicos e intelectuais costumavam se reunir no apartamento da cantora Nara Leão, em Copacabana. Eles queriam tocar o samba de outro jeito. Queriam algo mais moderno. O grupo contava com Carlinhos Lyra, Bôscoli, Menescal, Billy Blanco, Sérgio Ricardo, ..., e João Gilberto.
Esse novo método de sambar foi celebremente introduzido por João no seu disco Chega de Saudade.

Ele sintetizou toda aquela instrumentação do samba, que eu já comentei, em seu violão, acompanhado por uma bateria, um contra-baixo, piano e alguns instrumentos de sopro e arco. Tem-se agora um samba mais cool. O jazz americano da época (Cole Porter, Gershwin, Getz etc) também teve sua influência na experiência de Gilberto, cedendo acordes dissonantes, nonas, décima terceiras e primeiras com sustenidos e bemóis.

Instrumentação influenciada pelo jazz, acordes dissonantes, letras inteligentes, cantar baixinho...

...Eis a Bossa Nova.

Escrevi esse ultra resumo pra mostrar algumas informações necessárias pra análise de Chega de Saudade. Indico o documentário Coisa Mais Linda - Histórias e Casos da Bossa Nova, de Paulo Thiago, para maiores aprofundamentos. Riquíssimo de informações e é todo levado pelo Carlos Lyra e Roberto Menescal.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

valsinha, chico buarque e vinícius de moraes.

O mp3tube tá com problemas há alguns dias, então tenho que recorrer ao youtube. Pra ficar menos pesada a página vou colocar exibição de 2 posts por página.



Letra:

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se ousava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz.



Continuando na 'vibe anos 70 ditadura', eis Valsinha, uma de minhas preferidas.

Essa peça de Chico e Vinícius, composta na década de 70, foi uma dedicatória ao movimento hippie que vinha ganhando força. Os hippies daquela época pregavam o amor, a fraternidade, a liberdade de ação em pleno época de forte repressão, viviam em grupos, usavam e abusavam do livre sexo e tudo mais.
Dá pra perceber direitinho essa alusão ao movimento quando a música nos apresenta um homem que chega diferente, que olha diferente, que pára de maldizer a vida, que dança, que ama.

A princípio a música iria levar o nome de Valsa Hippie, por idéia de Vinícius. Chico até aprovou de início mas logo retrucou, alegando que o movimento vinha virando 'modinha'. Então, Vinícius demasiadamente Vinícius, como tem a mania de colocar tudo no diminutivo... "Tá, Valsinha, então".

Eu achei no site oficial Dele duas cartas de Vinícius pra Chico - e vice versa - nas quais eles discutem a composição da Valsinha. Emocionante ler esse diálogo.

Notas sobre Valsinha
Por Vinicius de Moraes

Mar del Plata, 24/01/71

Chiquérrimo:

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a v., mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo me disse que Sérgio morava em Buri 11, e lá foi a carta para Buri 11.
Mas como v. me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se v. concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa Hippie, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que voce acha? O pessoal aqui no princípio estranhou um pouco, mas depois se amarrou à idéia. Escreva logo, dizendo o que v. achou.

VALSA HIPPIE

Um- dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/
Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar/
E não falou mal da poesia como era mania sua de falar/
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: /Vamos nos amar
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços coma a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.

Vinicius de Moraes


Resposta de Chico:

Por Chico Buarque
Rio, 2 de fevereiro (sem o ano)

"Caro Poeta,
Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí.
Valsa Hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.
Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da t... final. "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:
- Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. E gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.
- Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
- A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, porque deu bolo como o Apesar de Você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um p... no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Chico Buarque.



Me bate até uma timidez de fazer comentários da peça depois de ler.

Bem, a primeira coisa a se notar na música são as fases pelas quais passam as personagens. Repare que primeiro a letra nos mostra o "Ele" e o que ele faz, depois o "Ela" e o que ela faz e, finalmente, o "Os dois" e o que os dois fazem. Lindo.

Digamos que antes de começar a música existe um mero casal, infestado pelos valores populares de convivência. Até porque a melodia do início da música não é muito simpática...
Então, dá-se uma suavizada na melodia para a entrada da letra - ou do conto com final feliz.

Assim que começa a música, o homem da relação resolve chegar diferente do jeito que sempre chegou, resolve olhar sua mulher de um jeito que nunca a olhou, resolve parar de xingar a vida e convidar sua mulher para rodar, como está na primeira estrofe da música.
Legal que esse "rodar" possui dois sentidos: dançar ou dar uma volta, passear. Digamos que foi o pontapé inicial para a adesão do movimento.

Agora, no começo da segunda estrofe, entra a Ela.
Ela, depois das atitudes Dele, resolve ousar, ficar mais bonita, resolve botar um vestido decotado que já tava cheirando a guardado, a mofo, de tanto que esperou pra ser usado.

E então entram os "Dois".
Eles, então, cruzam seus braços como há muito tempo já não cruzavam e vão para a praça pra namorar.
Por fim, o clímax da valsa:

"E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz."


Me arrepio até escrevendo, sem a música tocando.
Na praça eles dançaram tanta dança que toda a vizinhança se apavorou e toda a cidade se iluminou. Genial essa metáfora.
Claro que a "dança" da letra se refere ao sexo! O casal, que agora é hippie, fez tanto sexo na praça que despertaram toda a vizinhança e coloriram toda a cidade.

E não são só essas as metáforas existentes na música.
Vamos assumir que eles não viraram hippies.
Apareceriam, então, umas espécies de eufemismos.
O tal vestido decotado pode ser simplesmente uma camisola.
A praça para a qual eles vão namorar pode se tornar a cama.
Como já falei, o "cheirando a guardado" representaria a camisola que estava engavetada.

Espetáculo a parte de Chico e Vinícius.
Ah, me esforçarei ao máximo pra não colocar nada de Chico na próxima postagem.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

tanto mar, chico buarque.

Letra censurada:



Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


Letra modificada por Chico após a censura:



Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Composta no final da década de 70, Tanto Mar nos mostra uma espécie de carta escrita por um português no Brasil para outro português em Portugal.
A chave para abrir a análise da música é saber o que se passava, nos anos 70, em ambos os países: regime ditatorial.

No Brasil, Ernesto Geisel assumia a presidência em 74, sendo o sucessor do "Você" (Apesar de Você) de Chico, Emílio Médici; em Portugal, no mesmo ano de 74, era derrubado o presidente Américo de Deus Rodrigues Tomás, que dava continuidade a um regime ditatorial - que durou cerca de 41 anos - ídealizado por António de Oliveira Salazar, o Salazarismo.


Em 25 de Abril de 1974, o regime português foi derrubado por uma revolução popular que ficou conhecida como Revolução dos Cravos. Há várias histórias pro uso do cravo como símbolo da revolução. A versão que li dizia que, ao amanhecer, uma florista levava cravos para a decorar a inauguração de um hotel quando foi surpreendida por um soldado, solidário à revolução, que colocou um de seus cravos na ponta da espingarda, sendo imitado, logo após, por todos os outros.

A primeira letra da música foi censurada no Brasil, obrigando Chico a rescreevê-la mais tarde. Motivo? Não sei. Talvez pra não instigar mais nenhum movimento revolucionário aqui no Brasil, influenciado pelo lusitano. A música foi liberada assim que o movimento em Portugal foi suprimido.



Vou olhar uma de cada vez.

A melodia da música é o Fado, um ritmo português alegre e dançante cuja origem é desonhecida.

Perceba que a primeira letra é escrita toda no tempo Presente, para simbolizar que a revolução está se passando no exato momento da escrita da carta.

Nas duas primeiras estrofes da música censurada já aparecem as palavras firinas - cravo ou flor - que, creio eu, deve ter mexido com os ânimos dos censores:

"Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um
cravo para mim"

"Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma
flor no teu jardim"

Evidente que a festa, a qual Chico - ou o português no Brasil - se refere, é a própria Revolução dos Cravos.

Na segunda estrofe da letra censurada - e da não censurada também -, Chico comenta do imenso Oceano Atlântico que separa os dois países (Brasil e Portugal) para, celebremente, citar uma frase de Fernando Pessoa, poeta português: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Isso aparece no trecho:

"Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar

Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar"

Na última estrofe,

"Lá faz primavera, pá
estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim"


Chico fala da "primavera", do aparecimento das flores, dos cravos, LÁ, em Portugal.
Porém Cá, no Brasil, ele está doente. Doente, ainda, de um vírus chamado Médici.

E a música termina com o português do Brasil pedindo, urgentemente, um cheirinho de alecrim, uma planta portuguesa que exala um aroma forte e agradável , para ajudá-lo respirar melhor, dentre tanta 'fumaça' que circula pelas ruas no Brasil.

Interessante também é o contexto que Chico dá em todas as suas músicas. Em Tanto Mar, ele abusa do "pá" no final das frases, que é uma "corruptela" de 'Rapaz', em Portugal (equivale a um nordestino 'oxe' e a um paulistano 'mano').

Além disso:
usa de verbos no imperativo - tempo muito usado lá;
troca o "aqui" por "cá";
concorda os verbos e pronomes com a 2ª pessoa do singular (tu), como se vê em "...Com a TUA gente...", "...Uma flor no TEU jardim...".

A letra pós-censura não difere muito da pré.

Perceba que agora Chico escreve a segunda letra no tempo Passado, para passar a idéia de uma letra póstuma, do término da Revolução e, acima de tudo, do seu desando: em 25 de novembro de 1975, um golpe militar pôs fim ao PREC (Processo Revolucionário em Curso).

Ele explicita isso na segunda estrofe, fazendo um jogo com "murcharam teu cravo"/"terminaram tua festa":

"Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim"


A mensagem desse trecho é magnífica:
Já murcharam nossa festa, mas certamente esqueceram uma semente em algum canto do nosso jardim.
Podaram nosso Cravo mas, com certeza, esqueceram algumas sementes de Cravo pelo caminho.
Termiram com nossa festa mas, sem dúvida, o espírito revolucionário ainda está vivo.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

morena dos olhos d'água, chico buarque.

Bem, abro o blog com a interpretação de uma canção de Chico, chamada Morena dos Olhos d'água, em homenagem a Clarice Carvalho.
Todas as postagens seguirão esse padrão: música para ouvir; letra da música; minha interpretação.
No final, discorde, concorde, opine, comente.


 Chico Buarque - Morena dos Olhos D'água



Morena, dos olhos d'água,
Tira os seus olhos do mar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.

Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar,
Mas que tem abraço estreito, morena,
Com jeito de lhe agradar.
Vem ouvir lindas histórias
Que por seu amor sonhei.
Vem saber quantas vitórias, morena,
Por mares que só eu sei.

Morena, dos olhos d'água,
Tira os seus olhos do mar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.

O seu homem foi-se embora,
Prometendo voltar já.
Mas as ondas não tem hora, morena,
De partir ou de voltar.
Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também.
Mas meu canto ainda lhe implora, morena,
Agora, morena, vem.

Morena, dos olhos d'água,
Tira os seus olhos do mar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.


A musa da música é a Eleonora Mendes Caldeira, uma psicanalista de olhos exageradamente verdes, cabelos negros, pele clara pela qual Chico foi muito apaixonado, segundo amigos. Mesmo sendo da "high society", Eleonora sempre foi considerada uma pessoa de uma simplicidade ímpar, muito afável e de uma bagagem cultural pesada, diferente das socialites de Sampa. Ela é a autora do livro "Cultura e Elegância".

Chico não chegou a assumir publicamente que escreveu a canção para ela, mas, timidamente, soltou num dvd (o qual não me recordo com certeza agora) que houve, sim, a existência da musa, mas pediu para que o diretor não colocasse esse trecho da entrevista no dvd, porque sabia que hoje ela é uma senhora e, acima de tudo, muito bem casada!

Chico compôs toda a música com apenas 22 anos, em 1966. A melodia é bem simples e muito tranquilizadora (sem trema agora, né?). É uma melodia bem mar. Vai e vem; sobe e desce. Certa vez, Dorival Caymmi durante uma entrevista foi perguntado sobre Chico e, na sua resposta, fez questão de frizar de que sua (Chico) melhor música é Morena dos olhos d'água.

Vamos à análise.

A letra mostra uma separação porém, claro, nos permite várias interpretações.
Eu acredito em 3 personagens na música: a morena, o homem da morena e o próprio Chico.

A morena.

A morena é revelada logo no começo como uma mulher que sofre, já que na primeira estrofe da letra encontra-se "Vem ver que a vida ainda vale o sorriso que eu tenho pra te dar".
Além disso ela é esperançosa e espera pelo seu homem olhando pro mar, vindo daí os seus olhos de água: olhos verdes da cor da água do mar ou olhos cheio de água de choro, tristeza.
A esperança da morena é o mar. É do mar que vai aparecer o seu homem, é pelo mar que seu homem vai voltar.
E aí, então, aparece a 2ª personagem que é o seu homem.

O homem.

Podemos interpretar o homem da morena como sendo um pescador, um marinheiro, um navegante, um terrestre que se sente em casa no oceano. Vida de marinheiro é vida desgarrada. É aquela coisa de "vou pro mar e volto já".
Na quarta estrofe, Chico, como compositor e personagem, mostra que o homem da morena está a mercê das ondas, falando que o homem dela foi embora, prometendo voltar já, sendo que as ondas não têm hora de partir ou de voltar.

Chico.

A 3ª personagem - o próprio Chico - aparece na segunda e quarta estrofe.
Chico, que não é bobo nem nada, se mostra, nas duas estrofes, "cantando" a morena, se aproveitando da ausência do homem dela.
Perceba na 2ª estrofe:

"Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar,
Mas que tem abraço estreito, morena,
Com jeito de te agradar."


Aí, o Chico-personagem deita o morena em seu próprio peito prometendo nunca trocá-la pelo mar, como o seu homem fez.

"Vem ouvir lindas histórias
Que por teu amor sonhei.
Vem saber quantas vitórias, morena,
Por mares que só eu sei."


Aí parece como uma paquera de pescador. A paquera nas duas primeiras linhas; e o pescador na duas últimas - Vem saber das minhas vitórias (histórias) pelos mares que somente eu sei. As famosas "Histórias de Pescador".

Agora na 4ª estrofe (minha preferida):

"O teu homem foi-se embora,
Prometendo voltar já.
Mas as ondas não tem hora, morena,
De partir ou de voltar."


Como já comentei, aí, o Chico-personagem incita a morena a esquecer do seu homem já que não se pode prever quando ele vai voltar - e se vai voltar.

"Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também.
Mas meu canto ainda te implora, morena,
Agora, morena, vem."


Esse trecho é maravilhoso.
Podemos ver por dois ângulos:

1) Passou o tempo e passou a vela (o barco) na qual estava o homem da morena. E já que ele passou "Agora, morena, vem!!!" hahaha.

2) Entre velas e tempo que passaram pelo mar, valeu por esperar porque "Agora, morena, (finalmente ele) vem"
Claro que o primeiro é mais coerente.

Já que olhos são uma constante nas peças de Chico e a Sua obra é como uma teia-de-aranha (as músicas têm ligações) podemos fazer uma ligação com os olhos de "Carolina"... "Carolina, nos seus olhos fundos guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo..."

E a música termina com o refrão com Chico repetindo o último trecho "Vem ver que a vida ainda vale / O sorriso que eu tenho / Pra te dar.", para provocar mais ainda a "sua" morena.

Início.

Interpretações de todas as formas de arte.
O intuito do blog é basicamente despertar a sensibilidade auditiva e visual, ver o não explícito.


Saudações!