quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

valsinha, chico buarque e vinícius de moraes.

O mp3tube tá com problemas há alguns dias, então tenho que recorrer ao youtube. Pra ficar menos pesada a página vou colocar exibição de 2 posts por página.



Letra:

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se ousava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz.



Continuando na 'vibe anos 70 ditadura', eis Valsinha, uma de minhas preferidas.

Essa peça de Chico e Vinícius, composta na década de 70, foi uma dedicatória ao movimento hippie que vinha ganhando força. Os hippies daquela época pregavam o amor, a fraternidade, a liberdade de ação em pleno época de forte repressão, viviam em grupos, usavam e abusavam do livre sexo e tudo mais.
Dá pra perceber direitinho essa alusão ao movimento quando a música nos apresenta um homem que chega diferente, que olha diferente, que pára de maldizer a vida, que dança, que ama.

A princípio a música iria levar o nome de Valsa Hippie, por idéia de Vinícius. Chico até aprovou de início mas logo retrucou, alegando que o movimento vinha virando 'modinha'. Então, Vinícius demasiadamente Vinícius, como tem a mania de colocar tudo no diminutivo... "Tá, Valsinha, então".

Eu achei no site oficial Dele duas cartas de Vinícius pra Chico - e vice versa - nas quais eles discutem a composição da Valsinha. Emocionante ler esse diálogo.

Notas sobre Valsinha
Por Vinicius de Moraes

Mar del Plata, 24/01/71

Chiquérrimo:

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a v., mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo me disse que Sérgio morava em Buri 11, e lá foi a carta para Buri 11.
Mas como v. me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se v. concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa Hippie, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que voce acha? O pessoal aqui no princípio estranhou um pouco, mas depois se amarrou à idéia. Escreva logo, dizendo o que v. achou.

VALSA HIPPIE

Um- dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/
Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar/
E não falou mal da poesia como era mania sua de falar/
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: /Vamos nos amar
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços coma a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.

Vinicius de Moraes


Resposta de Chico:

Por Chico Buarque
Rio, 2 de fevereiro (sem o ano)

"Caro Poeta,
Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí.
Valsa Hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.
Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da t... final. "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:
- Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. E gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.
- Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
- A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, porque deu bolo como o Apesar de Você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um p... no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Chico Buarque.



Me bate até uma timidez de fazer comentários da peça depois de ler.

Bem, a primeira coisa a se notar na música são as fases pelas quais passam as personagens. Repare que primeiro a letra nos mostra o "Ele" e o que ele faz, depois o "Ela" e o que ela faz e, finalmente, o "Os dois" e o que os dois fazem. Lindo.

Digamos que antes de começar a música existe um mero casal, infestado pelos valores populares de convivência. Até porque a melodia do início da música não é muito simpática...
Então, dá-se uma suavizada na melodia para a entrada da letra - ou do conto com final feliz.

Assim que começa a música, o homem da relação resolve chegar diferente do jeito que sempre chegou, resolve olhar sua mulher de um jeito que nunca a olhou, resolve parar de xingar a vida e convidar sua mulher para rodar, como está na primeira estrofe da música.
Legal que esse "rodar" possui dois sentidos: dançar ou dar uma volta, passear. Digamos que foi o pontapé inicial para a adesão do movimento.

Agora, no começo da segunda estrofe, entra a Ela.
Ela, depois das atitudes Dele, resolve ousar, ficar mais bonita, resolve botar um vestido decotado que já tava cheirando a guardado, a mofo, de tanto que esperou pra ser usado.

E então entram os "Dois".
Eles, então, cruzam seus braços como há muito tempo já não cruzavam e vão para a praça pra namorar.
Por fim, o clímax da valsa:

"E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz."


Me arrepio até escrevendo, sem a música tocando.
Na praça eles dançaram tanta dança que toda a vizinhança se apavorou e toda a cidade se iluminou. Genial essa metáfora.
Claro que a "dança" da letra se refere ao sexo! O casal, que agora é hippie, fez tanto sexo na praça que despertaram toda a vizinhança e coloriram toda a cidade.

E não são só essas as metáforas existentes na música.
Vamos assumir que eles não viraram hippies.
Apareceriam, então, umas espécies de eufemismos.
O tal vestido decotado pode ser simplesmente uma camisola.
A praça para a qual eles vão namorar pode se tornar a cama.
Como já falei, o "cheirando a guardado" representaria a camisola que estava engavetada.

Espetáculo a parte de Chico e Vinícius.
Ah, me esforçarei ao máximo pra não colocar nada de Chico na próxima postagem.

5 comentários:

  1. Eu li o comentário de chico sobre a música ter um certo apelo popular e me surpreendeu que ele ficasse surpreso com a reação pública. O personagem retratado na música, o tal bancário, chato, pré-hippie digamos assim, é um cara típico dos anos 70. Apesar do movimento feminista ter sido de forte repercussão no final da década de 60, os homens e mulheres ainda eram muito machistas e esperava-se que o homem trabalhasse e tivesse essa postura de 'macho-retrógrado'. Quando a música revela um personagem transformado, ao menos por uns instantes, ela reflete meio que um sonho de muitas mulheres na época e por quê não dizer das mulheres contemporâneas(?). Esse homem que chega transformado em casa depois do trabalho e não quer saber de nada além da sua mulher, da sua amada, é o sonho de toda mulher casada ou que sonha em se casar um dia. Todas(os) queremos um relacionamento envolvente. E a forma com que a música transpareceu esse casal, a forma como Ela ficou feliz e vaidosa ao sentir a mudança do marido, acalenta as ansias de muitos. Apesar da indústria vender o american way of life naquela época, a família feliz, a dona de casa satisfeita, o marido saciado; a realidade era diferente e por isso que a música despertava e ainda desperta sentimentos ocultos em todos.

    Está ótimo o blog, othon!
    :)

    (anine)

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  2. Ow boy, o q mais pode ser dito aqui?!

    "que bela cosa"

    bços

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  3. E, proseguindo a saga, eis que me aparece dois das mais nobres almas poéticas, juntos em uma lírica de dar inveja. Agora meu caro, lhé peço, quase lhé suplico, pegue nosso poetinha e o esmiuce também! E como sempre, grande trabalho meu amigo!

    Aquele abraço!

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