quarta-feira, 24 de junho de 2009

choro bandido, chico buarque e edu lobo.

Eu tava pra fazer a análise dessa música logo depois de Samba de uma nota só, em meados de fevereiro.
Choro bandido sempre me fascinou pela riqueza melódica e profundidade da letra. Já tinha até umas coisas na cabeça pra escrever mas que se perderam dentre outras que entraram quando voltaram as aulas na faculdade.
"Se perderam".
Escutei ela agora pouco e as achei rapidinho e resolvi voltar aqui pra cumprir o compromisso comigo mesmo.

 Edu Lobo e Dori Caymmi - Choro Bandido



Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons.

Mesmo porque as notas eram surdas,
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons.

E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
"Você nasceu para mim."
"Você nasceu para mim..."

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido,
Minha musa, vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação!

Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão.

E eis que, menos sábios do que antes,
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
"...Me leve até o fim."
"Me leve até o fim..."

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons!



Choro Bandido foi composta por Chico e Edu pra uma peça de Augusto Boal, que faleceu recentemente, chamada O Corsário do Rei, em 1985. Como em todas as parcerias deles, Chico escreve e Edu musifica. Não conheço essa peça de Augusto então não vou entrar em detalhes na relação música-peça. Vou olhar como uma música solta.

O que baliza a canção do começo ao fim é um amor. Mais precisamente, a sedução. Uma sedução apelativa, naturalmente, e até infalível.

Acredito que o começo da música - e outras partes - definirão bem essa minha idéia de apelativa e infalível.
Perceba que a primeira estrofe aparece um alguém que se declara, de um modo bem vago, falso.
Essa falsidade assumida é simplesmente a falsidade assumida por um sedutor, que, ao decorrer da letra, vai usando, de certa forma, de discursos enganosos a fim de seduzir. Ser falso pra seduzir não é nenhum pecado, não?
Isso é confirmado com a primeira estrofe:

"Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo miseráveis os poetas
os seus versos serão bons."


Não importa que os cantores (sedutores) sejam falsos, assim como eu. As suas canções (palavras/intenções) não serão afetadas por isso e sempre serão bonitas. Não leve em consideração o quão miserável e repugnante seja um poeta, pois, mesmo assim, os seus versos serão bonitos. Considero essa como uma das temáticas destacáveis da música.

Pra que a música não seja apenas mais uma música, um clichê, Chico permeia toda a letra com concessões (frases começando com "mesmo que") e figuras da cultura clássica, mitologia e afins, para serem feitos paralelos com o processo de conquista do sedutor, colocando como protagonisa o deus grego Hermes.
Vou falar um tiquinho dele e de outros mitos que aparecerão pra fazer valer a minha cara aquisição do Livro de Ouro da Mitologia.

Na segunda estrofe ele - Hermes - dá o ar da graça:

"Mesmo porque as notas eram surdas,
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons."


A princípio, perceba, escutando a música, que a aparição de Hermes se dá com uma clara alteração da melodia, de modo a destacá-lo.

Hermes inventou a lira (foto), quando criança, um instrumento ligado a canto, poesia e porque não, sedução. Ele teve a tal idéia ao ver numa tartaruga algo mais do que um mero animal, fazendo do seu casco e de tripas de uma ovelha o instrumento. Achei na rede um trecho em que Homero escreve sobre isso, no seu Hino a Hermes. Leia:

"Ajustou, na medida, umas talas de cálamo exatas,
E, do dorso através e da pele, enfiou no quelônio
E, conforme pensava, uma pele de boi esticou
E dois braços extremos dispôs, por travessa ajuntados.
Sete cordas de tripa de ovelha estendeu harmoniosas.
Ao depois de fazê-lo, tomou do amorável brinquedo
E co’um plectro uma a uma provou cada corda, aos seus dedos
Ressoava tremenda"


O número das tripas (7) talvez não tenha sido à toa, não?




O interessante dessa estrofe é perceber que ela continua a idéia da primeira ("mesmo que eu faça errado estou fazendo certo"), quando Hermes mata dois animais, com fins artísticos, de modo a tirar a surdez das notas e animar todos os sons.
Chico justifica esse ato de Hermes como um ato de um "sonso e ladrão"!
O 'sonso' é o adjetivo mais relevante no tocante à música. Já o 'ladrão' tem outra história.
Reza na mitologia que Hermes, ainda recém-nascido, roubou os bois de Apolo e, quando interrogado a respeito, negou piamente o ato de uma maneira muito persuasiva. Não é à toa que Hermes, dentre várias atribuições, é considerado o deus do ladrões, ou melhor, dos que fazem trabalhos secretos na calada da noite.
E, por fim, é assim que se tem a imagem do deus Hermes: sonso, ladrão, enganador, fingidor, sedutor, que será explorada no decorrer da letra.


A terceira estrofe - que é até difícil separá-la das duas anteriores, chamando-a de terceira - evidencia bem o poeta sedutor por trás de tudo:

"E daí nasceram as palavras
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu pra mim.
Você nasceu pra mim
."


Foi a partir da invenção da lira que as palavras usadas pelo sedutor, suas seduções, suas músicas e poesias nasceram.

Então, chega-se, ao meu ver, à mais simples e inteligente relação feita na letra com a mitologia, a quarta estrofe:

"Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido,
Minha musa, vai cair em tentação.
Mesmo porque estou falando grego com sua imaginção."


Aqui está retratada a imagem das Sereias, mais precisamente dos seus cantos e a de Ulisses.

Reza na mitologia, que os navegadores escutavam em alto e bom som o canto das sereias quando estavam em alto mar, passando por uma ilha do Mediterrâneo. Seduzidos eles iam atrás das belas melodias e vozes que ouviam. Ao chegarem na ilha, seus barcos colidiam com os recifes e naufragavam, sendo devorados pelas sereias logo após.
Ulisses foi um navegador que sobreviveu aos cantos se amarrando no mastro de seu barco, para não ir de encontro às sereias, e ordenando toda sua tripulação a tampar os ouvidos com cêra.

É nessa estrofe que o sedutor da música coloca o seu discurso como algo mais forte que o canto das sereias.
O que simnplesmente se quer dizer é:

"Minha futura seduzida, mesmo que você faça como Ulisses e feche seus ouvidos, você não resistirá à minha tentação."


Genialmente, Chico nos confirma todas as idéias usadas na letra, ao escrever esse pedaço:

"Mesmo porque eu estou falando grego com sua imaginação."

Nesse momento, é como se saísse o sedutor de cena e entrasse o escritor (Chico) falando diretamente para nós, ouvintes, que ele está falando em grego com o nosso imaginário.
É interessante que fica dúbio isso: entende-se a expressão "falar grego", de que quem ouve nada entende e entende-se "falar grego" como falar sobre o grego.

Sem sair do ambiente grego, Chico agora nos mostra, através do sedutor, mais dois pontos da mitologia: O labirinto de Dédalo (minotauro) e o adivinho de Tirésias. Perceba:

"Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
."


O labirinto foi criado para moradia do Minotauro, fruto da traição da rainha Pasífae com um touro vindo das águas, com Minos.
Já Tirésias foi um homem cego que ficou conhecido como o maior vidente da mitologia grega.
Essa estrofe fala, em outras palavras, que:

"Mesmo que você fuja do seu sedutor dentre lugares complicados e escuros (labirintos e alçapões), saiba que eu, poeta (sedutor), bem como Tirésias, posso vê-la e prevê-la."

Depois de tanta lábia, eis que, FINALMENTE, a seduzida se rende, perto do final da música, na penúltima estrofe:

"E eis que, menos sábios do que antes,
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
"...Me leve até o fim."
"Me leve até o fim..."
"


Portadores de, então, menos sabedoria que antes, os lábios, já ofegantes de tanta vontade, se renderão. Porém se renderão com a condição de eternidade.


"Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções.
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons! "


Esta última estrófe, não menos importante, apenas conclui a idéia já tão batida durante toda música, quando coloca o sedutor frente à seduzida, dizendo que...

...Mesmo que os romances sejam assim como o nosso, conquistado por algumas falsidades, não importa, não. As nossas canções nunca deixarão de ser bonitas. Aliás, a minha canção, a minha sedução, não deixará. Mesmo eu sendo errado ao te seduzir assim, o meu amor por você não deixará de ser bom e nem o seu. Ou melhor, o nosso amor não deixará.

Viva Chico e Edu!
E parabéns atrasado pra Chico que completou 65 anos dia 19 passado.

5 comentários:

  1. Cuando una persona comparte un poema, está dando mucho de sí misma: gracias por haberlo hecho.
    http://pulguitaatodogas.blogspot.com/

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  2. E como sempre, cá vem othon com mais uma de suas ótimas análises! Tirando um único erro de português (procure-o =P) o texto está impecável.

    Como sempre, parabéns meu amigo, bom ve-lo em atividade novamente!

    Viva o ócio criativo!

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  3. Massa Othon, q bom tê-lo de volta aqui por essas paragens...
    A musica é nada menos q show de bola e a tua dececada ñ deixou a desejar.

    Bços Jr

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  4. Meu caro...vou lhe fazer 1 pedido...conhece aquela... chamada "agente vai levando"? merece um espacinho aqui! grande abraço!

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  5. Brilhante... adoro essa canção! E com essa rica interpretação, nossa. Arrasou tanto que agora gosto mais do que antes.

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