Quando eu vou cantar, você não deixa E sempre vem a mesma queixa Diz que eu desafino, que eu não sei cantar Você tão bonita Mas sua beleza também pode se enganar.
Letra:
Se você disser que eu desafino amor Saiba que isso em mim provoca imensa dor Só privilegiados tem ouvido igual ao seu Eu possuo apenas o que Deus me deu...
Se você insiste em classificar Meu comportamento de anti-musical Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isto é Bossa Nova, que isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente É que os desafinados também têm coração Fotografei você na minha Rolley-Flex Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor Ele é o maior que você pode encontrar, viu! Você com a sua música esqueceu o principal:
Que no peito dos desafinados No fundo do peito bate calado É que no peito dos desafinados Também bate um coração.
Desafinado, escrita no final da década de 50, bem como Chega de Saudade, definiu também a Bossa. Segundo o próprio Tom, ela é uma espécie de crítica à especialização da música, à música bem feitinha, aos padrões de composição até então seguidos.
Pra análise da música, vou assumir uma metáfora que não sei se foi intencional ou não do Newton Mendonça na letra: a relação conflituosa de um casal apresentada na música seria a relação entre o músico bossanovista e os críticos de música da época.
A crítica aparece já no prelúdio que, diga-se de passagem, infelizmente, é raramente executado.
"Quando eu vou cantar, você não deixa E sempre vem a mesma queixa Diz que eu desafino, que eu não sei cantar Você tão bonita Mas sua beleza também pode se enganar."
A parte em negrito é o primeiro contato conflituoso entre o músico e o crítico. A bossa nova incorporou muito a dissonância do jazz. Isso, pra ouvidos leigos - ou desacostumados -, dava a impressão de que havia notas destoando, que havia uma desafinação. E foi daí que surgiu o nome da música. A metáfora da relação aparece mais forte quando a Beleza da mulher do músico que desafina se torna metaforicamente a inteligência, o intelecto do crítico. Perceba:
"Você tão bonita Mas sua beleza também pode se enganar"
"Você tão inteligente Mas sua inteligência também pode se enganar"
E realmente se enganava. Não havia desafinação nenhuma.
Na primeira frase da música aparece um detalhe genial.
"Se você disser que eu desafinoamor"
Justamente na sílaba "De" de Desafino e na palavra "amor", Tom dá uma "desafinada" proposital, para que o ouvinte entre - ou não - na idéia da música. Em termos técnicos, as notas "afinadas" ou "normais" dessa frase seriam essas:
B -C# D# E D# -C# - - -B -C# E - - -C# Se você disser que eu de sa fino amor
Porém, Tom a musicou assim:
B -C# D# E D# - C# - - - C -C# E - - -C Se vo cê disser que eu de sa fino amor
Essa tal desafinada dele foi simplesmente um aumento de meio tom na sílaba "De" e uma queda de meio tom na palavra "amor". Trocas essas que foram devidamente "corrigidas" aumentando em meio tom a décima primeira do acorde que as acompanha: passou de F#7 para F#7(11#).
O verso termina com o homem falando pra mulher - ou o músico falando pro crítico - que somente privilegiados possuem um ouvido igual ao seu, ao ponto de conseguir notar essa quebra na música. E ele, mero músico, possui apenas o ouvido que Deus lhe deu e que tal ouvido se agrada com esse novo estilo musical chamado Bossa Nova.
No segundo verso aparece denovo uma crítica ao crítico:
"Se você insiste em classificar Meu comportamento de anti-musical Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isto é Bossa Nova, que isto é muito natural"
Maravilha, não?
Mesmo você insistindo em dizer que meu jeito de compor é totalmente anti-musical, anti-padrões, eu devo te dizer que Isto é Bossa Nova, meu amigo, tudo isto é muito natural...
A tal Rolley-Flex, mostrada no 3º verso, era uma máquina fotográfica daquelas que todos queriam ter. Quando o homem fotografa sua mulher, na hora da revelação o que se revela é somente a ingratidão dela em não perceber sua real intenção musical.
Eu, sinceramente, não gosto muito do último verso da música. Ele é bonito, "No fundo do peito dos desafinados também bate um coração, mesmo que tímido, calado". Ficou meio piegas. Eu acharia melhor que houvesse uma continuação da insatisfação do músico criticado. Não me atrevo a palpitar um outro final. Porém, nada que tire toda a genialidade dessa obra.
Um espetáculo da música de Tom e da letra de Newton.
Caro Othon, passar aqui me enche de orgulho e sempre, sempre aprendo algo novo. Por exemplo, eu já ouvi essa musica um milhão de vezes e desconhecia o seu preludio. E essa tensão na relação do musico com sua esposa e da bossa com seus criticos ficou muito clara. Cara a gente tem que divulgar mais isso aqui, pq tá bom demais...
Senhores, Newton Mendonça nunca foi letrista. Isto foi uma declaração infeliz do Tom em 1968, que cretinizou várias gerações de pseudocronistas e "historiadores". Newton foi músico, músico, músico. Apenas pianista e compositor. O negócio do Newton era música, fotografia, cinema e política. Foi o primeiro comunista da Bossa Nova. De carteirinha do PCB. Ao contrário, Tom, que, além de músico, compositor e arranjador (nunca foi maestro, nunca regeu na vida), foi excelente letrista e sonhava em ser poeta como o pai, como Thiago de Mello, amigo da família, e como Vinicius, seu ídolo. Newton Mendonça foi o mais importante compositor da Bossa Nova, a ruptura, a ousadia, a vanguarda, atitudes só existentes em Tom, até 1960, quando ele está com Newton. Tom com outros parceiros, até 1960, é conservador: samba-canção, canção, balada, toada, samba tradicional etc. Newton estruturou o estilo, criou, com Tom, as canções (caminhos melódicos, preciosas harmonias e insinuações ritmicas) que permitiram a João Gilberto criar a batida revolucionária: Foi a noite, Só saudade, Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Caminhos Cruzados, O domingo azul do mar, entre outros clássicos. Afora, a obra exclusiva de Newton, pouco conhecida. Ao lado de Newton, e abaixo dele, Tom e Johnny Alf. Este último, o precursor, o primeiro a ousar. Tudo na década de 1950, tempo da criação e estruturação da estética. A década seguinte foi de consolidação e divulgação. A dupla New-Tom foi a principal parceria da Bossa Nova. Os dois faziam tudo juntos, música e letra. Nunca houve um letrista do Newton, ou um letrista do Tom. Duas exceções: Newton fez sozinho a primeira parte do Samba de uma nota só, música e letra, no inverno de 1954. Nem se sonhava com Bossa Nova. Em 1958, eles fizeram a segunda parte. E a música de Meditação é exclusivamente de Newton, sem Tom. E a letra de Meditação é exclusivamente de Tom, sem Newton. À disposição para conversar e debater, Marcelo Câmara, biógrafo de Newton Mendonça e estudioso da Música Brasileira, principalmente da Bossa Nova (www.ilhaverde.net; ilhaverde@ilhaverde.net e tel. 21-2523-5989)
Obrigado cidadão pela excelente dose de esclarecimentos que me proporcionou, admiro a música de figuras solares como o Tom e esse meteoro de ouro o Newton, que tão depressa se foi.
A fonte é ele, meu caro: "Marcelo Câmara, biógrafo de Newton Mendonça e estudioso da Música Brasileira, principalmente da Bossa Nova"... pra mim, já basta.rs
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Não vejo como piegas...mas como uma crítica ao próprio crítico,
ResponderExcluir"Você com a sua música(redonda, correta, consonante) esqueceu o principal:
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
É que no peito dos desafinados
Que mesmo desafinado(dissonante) há música.
Mas cada um com seu quadrado não é meu amigo?
Deverás como sempre, um ótimo trabalho!
Newton Mendonça era um gênio, quase sempre esquecido na bossa por sua morte precoce.
Aquele Abraço
Também bate um coração
Que mesmo aquele que é disonante
Othon,
ResponderExcluirEstou achando genial este seu blog.
Putz..
QUALIDADE!
abração
(ah, valeu pelo comentário e por indicar meu blog no seu)
Caro Othon, passar aqui me enche de orgulho e sempre, sempre aprendo algo novo.
ResponderExcluirPor exemplo, eu já ouvi essa musica um milhão de vezes e desconhecia o seu preludio.
E essa tensão na relação do musico com sua esposa e da bossa com seus criticos ficou muito clara.
Cara a gente tem que divulgar mais isso aqui, pq tá bom demais...
bços e até
Senhores, Newton Mendonça nunca foi letrista. Isto foi uma declaração infeliz do Tom em 1968, que cretinizou várias gerações de pseudocronistas e "historiadores". Newton foi músico, músico, músico. Apenas pianista e compositor. O negócio do Newton era música, fotografia, cinema e política. Foi o primeiro comunista da Bossa Nova. De carteirinha do PCB. Ao contrário, Tom, que, além de músico, compositor e arranjador (nunca foi maestro, nunca regeu na vida), foi excelente letrista e sonhava em ser poeta como o pai, como Thiago de Mello, amigo da família, e como Vinicius, seu ídolo. Newton Mendonça foi o mais importante compositor da Bossa Nova, a ruptura, a ousadia, a vanguarda, atitudes só existentes em Tom, até 1960, quando ele está com Newton. Tom com outros parceiros, até 1960, é conservador: samba-canção, canção, balada, toada, samba tradicional etc. Newton estruturou o estilo, criou, com Tom, as canções (caminhos melódicos, preciosas harmonias e insinuações ritmicas) que permitiram a João Gilberto criar a batida revolucionária: Foi a noite, Só saudade, Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Caminhos Cruzados, O domingo azul do mar, entre outros clássicos. Afora, a obra exclusiva de Newton, pouco conhecida. Ao lado de Newton, e abaixo dele, Tom e Johnny Alf. Este último, o precursor, o primeiro a ousar. Tudo na década de 1950, tempo da criação e estruturação da estética. A década seguinte foi de consolidação e divulgação. A dupla New-Tom foi a principal parceria da Bossa Nova. Os dois faziam tudo juntos, música e letra. Nunca houve um letrista do Newton, ou um letrista do Tom. Duas exceções: Newton fez sozinho a primeira parte do Samba de uma nota só, música e letra, no inverno de 1954. Nem se sonhava com Bossa Nova. Em 1958, eles fizeram a segunda parte. E a música de Meditação é exclusivamente de Newton, sem Tom. E a letra de Meditação é exclusivamente de Tom, sem Newton. À disposição para conversar e debater, Marcelo Câmara, biógrafo de Newton Mendonça e estudioso da Música Brasileira, principalmente da Bossa Nova (www.ilhaverde.net; ilhaverde@ilhaverde.net e
ResponderExcluirtel. 21-2523-5989)
Obrigado cidadão pela excelente dose de esclarecimentos que me proporcionou, admiro a música de figuras solares como o Tom e esse meteoro de ouro o Newton, que tão depressa se foi.
ExcluirInteressante o comentário do Marcelo. Gostaria de saber qual a fonte para a afirmação sobre Samba de Uma Nota Só e Meditação.
ResponderExcluirA fonte é ele, meu caro: "Marcelo Câmara, biógrafo de Newton Mendonça e estudioso da Música Brasileira, principalmente da Bossa Nova"... pra mim, já basta.rs
Excluiro que acontecia no Brasil na epoca que essa musica foi composta?
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