sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

chega de saudade, tom jobim e vinícius de moraes.

 Joao Gilberto(Tom Jobim/Vinicius) - Chega de Saudade


Vai minha tristeza,
e diz a ela que sem ela não pode ser.
Diz-lhe, numa prece
Que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade, a realidade é que
sem ela não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai.

Mas se ela voltar,
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei
Na sua boca,
dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim.
Não quero mais esse negócio de você longe de mim...

Essa é a versão de João Gilberto do disco Chega de Saudade que comentei no último post.

Bem, eu divido essa música em 3 partes: introdução, modo menor e modo maior(ou bossa nova).

Introdução.

No livro Chega de Saudade, de Ruy Castro, há uma passagem falando que Tom se inspirou num chorinho que sua empregada costumava assobiar quando foi começar a compor Chega de Saudade. Eu vejo uma influência exagerdamente forte do Choro em todo música, principalmente na introdução. Escute.
A introdução, poeticamente, está representando a fase da melancolia, da tristeza musical que antecede a Bossa Nova.

Modo menor.

A letra começa de um modo triste e sem esperanças, acompanhada por uma melodia em tom menor (ré menor, originalmente) e embalada pela introdução tão triste quanto.
Perceba isso na primeira estrofe quando Vinícius escreveu que: vai lá minha infinita tristeza e diz a ela que eu não posso nada ser sem ela... diz a ela, religiosamente, que ela volte urgentemente porque eu não posso mais sofrer... não aguento mais saudade, pois sem ela não há paz, beleza, só há a melancolia que não sai de mim.
E ainda toda essa tristeza representa a fase antecessora da Bossa.

"Vai minha tristeza,
e diz a ela que sem ela não pode ser.
Diz-lhe, numa prece
Que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade, a realidade é que
sem ela não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai."


Modo maior.

Então, a música dá uma virada magnífica. De um tom menor passa para um tom maior (ré menor para ré maior), acompanhada agora por uma letra repleta de alegria e esperança (Vale ressaltar que, musicalmente, tons menores trazem uma música triste e tons maiores uma música alegre). É aqui que começa a Bossa nova! É nessa troca de astral musical que quebra-se com os antigos padrões musicais para se mostrar uma nova fase linda da nossa música. A bossa nova se inicia aos 55 segundos dessa música!

Vinícius escreve agora que: aaah, se ela voltar que coisa linda seria. Quantos peixes existem no mar? Dane-se quantos. Eu darei mais beijinhos em você do que essa tal quantidade. Teu lugar é nos meus braços, regado a milhões de abraços e beijos. Tudo isso pra nunca mais você fugir de mim, nunca mais viver longe de mim.

"Mas se ela voltar,
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei
Na sua boca
,
dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim.
Não quero mais esse negócio de você longe de mim"...


Perceba que nessa última parte - na parte bossa nova - aparecem as identidades do nosso poetinha e do nosso maestro soberano.
90% da obra de Tom tem a mata atlântica no meio, tem a natureza, segundo o próprio. Perceba, então, o mar e os peixinhos na letra.
Vinícius adorava usar de diminutivos em suas músicas, poemas, sonetos, modos de se referir a alguém. Perceba os "peixinhos" e os "beijinhos".

Outro detalhe interessante. A música começa mostrando a distância entre as duas pessoas e exatamente no final da música essa distância é anulada com um: "Não quero mais esse negócio de você longe de mim"

É impressionante como após 50 anos da composição dessa obra ela permanece surpreendente e intocável.

Um espetáculo de Vinícius e Tom.

prelúdio a chega de saudade.

Comecei a escrever mas parei.
Não tem como fazer uma análise de Chega de Saudade sem antes falar um pouquinho da história da Bossa Nova. Mas bem pouquinho mesmo.

Há exatos 50 anos e 5 meses era lançado um compacto do violonista baiano João Gilberto que trazia a Chega de Saudade entre suas faixas. Ele já havia participado, tocando seu violão, uns meses antes no disco da Elizeth Cardoso, Canção do Amor Demais, que também já trazia a música, mas eu prefiro ficar do lado de que foi no LP de João que a bossa foi concebida, que a bossa foi definida.

Antes desse disco, era tocado muito o samba e o choro. Década de 30, 40. Esses gêneros pediam instrumentos de alto volume e dançantes como reco-reco, pandeiro, cavaquinho, surdo, cuíca e etc. Além dos instrumentos, os cantores desses gêneros também tinham essa característica do cantar alto, alegre, contagiante.

Em meados da década de 50, um grupo de jovens músicos e intelectuais costumavam se reunir no apartamento da cantora Nara Leão, em Copacabana. Eles queriam tocar o samba de outro jeito. Queriam algo mais moderno. O grupo contava com Carlinhos Lyra, Bôscoli, Menescal, Billy Blanco, Sérgio Ricardo, ..., e João Gilberto.
Esse novo método de sambar foi celebremente introduzido por João no seu disco Chega de Saudade.

Ele sintetizou toda aquela instrumentação do samba, que eu já comentei, em seu violão, acompanhado por uma bateria, um contra-baixo, piano e alguns instrumentos de sopro e arco. Tem-se agora um samba mais cool. O jazz americano da época (Cole Porter, Gershwin, Getz etc) também teve sua influência na experiência de Gilberto, cedendo acordes dissonantes, nonas, décima terceiras e primeiras com sustenidos e bemóis.

Instrumentação influenciada pelo jazz, acordes dissonantes, letras inteligentes, cantar baixinho...

...Eis a Bossa Nova.

Escrevi esse ultra resumo pra mostrar algumas informações necessárias pra análise de Chega de Saudade. Indico o documentário Coisa Mais Linda - Histórias e Casos da Bossa Nova, de Paulo Thiago, para maiores aprofundamentos. Riquíssimo de informações e é todo levado pelo Carlos Lyra e Roberto Menescal.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

valsinha, chico buarque e vinícius de moraes.

O mp3tube tá com problemas há alguns dias, então tenho que recorrer ao youtube. Pra ficar menos pesada a página vou colocar exibição de 2 posts por página.



Letra:

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se ousava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz.



Continuando na 'vibe anos 70 ditadura', eis Valsinha, uma de minhas preferidas.

Essa peça de Chico e Vinícius, composta na década de 70, foi uma dedicatória ao movimento hippie que vinha ganhando força. Os hippies daquela época pregavam o amor, a fraternidade, a liberdade de ação em pleno época de forte repressão, viviam em grupos, usavam e abusavam do livre sexo e tudo mais.
Dá pra perceber direitinho essa alusão ao movimento quando a música nos apresenta um homem que chega diferente, que olha diferente, que pára de maldizer a vida, que dança, que ama.

A princípio a música iria levar o nome de Valsa Hippie, por idéia de Vinícius. Chico até aprovou de início mas logo retrucou, alegando que o movimento vinha virando 'modinha'. Então, Vinícius demasiadamente Vinícius, como tem a mania de colocar tudo no diminutivo... "Tá, Valsinha, então".

Eu achei no site oficial Dele duas cartas de Vinícius pra Chico - e vice versa - nas quais eles discutem a composição da Valsinha. Emocionante ler esse diálogo.

Notas sobre Valsinha
Por Vinicius de Moraes

Mar del Plata, 24/01/71

Chiquérrimo:

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a v., mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo me disse que Sérgio morava em Buri 11, e lá foi a carta para Buri 11.
Mas como v. me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se v. concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa Hippie, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que voce acha? O pessoal aqui no princípio estranhou um pouco, mas depois se amarrou à idéia. Escreva logo, dizendo o que v. achou.

VALSA HIPPIE

Um- dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/
Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar/
E não falou mal da poesia como era mania sua de falar/
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: /Vamos nos amar
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços coma a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.

Vinicius de Moraes


Resposta de Chico:

Por Chico Buarque
Rio, 2 de fevereiro (sem o ano)

"Caro Poeta,
Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí.
Valsa Hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.
Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da t... final. "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:
- Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. E gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.
- Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
- A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, porque deu bolo como o Apesar de Você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um p... no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Chico Buarque.



Me bate até uma timidez de fazer comentários da peça depois de ler.

Bem, a primeira coisa a se notar na música são as fases pelas quais passam as personagens. Repare que primeiro a letra nos mostra o "Ele" e o que ele faz, depois o "Ela" e o que ela faz e, finalmente, o "Os dois" e o que os dois fazem. Lindo.

Digamos que antes de começar a música existe um mero casal, infestado pelos valores populares de convivência. Até porque a melodia do início da música não é muito simpática...
Então, dá-se uma suavizada na melodia para a entrada da letra - ou do conto com final feliz.

Assim que começa a música, o homem da relação resolve chegar diferente do jeito que sempre chegou, resolve olhar sua mulher de um jeito que nunca a olhou, resolve parar de xingar a vida e convidar sua mulher para rodar, como está na primeira estrofe da música.
Legal que esse "rodar" possui dois sentidos: dançar ou dar uma volta, passear. Digamos que foi o pontapé inicial para a adesão do movimento.

Agora, no começo da segunda estrofe, entra a Ela.
Ela, depois das atitudes Dele, resolve ousar, ficar mais bonita, resolve botar um vestido decotado que já tava cheirando a guardado, a mofo, de tanto que esperou pra ser usado.

E então entram os "Dois".
Eles, então, cruzam seus braços como há muito tempo já não cruzavam e vão para a praça pra namorar.
Por fim, o clímax da valsa:

"E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz."


Me arrepio até escrevendo, sem a música tocando.
Na praça eles dançaram tanta dança que toda a vizinhança se apavorou e toda a cidade se iluminou. Genial essa metáfora.
Claro que a "dança" da letra se refere ao sexo! O casal, que agora é hippie, fez tanto sexo na praça que despertaram toda a vizinhança e coloriram toda a cidade.

E não são só essas as metáforas existentes na música.
Vamos assumir que eles não viraram hippies.
Apareceriam, então, umas espécies de eufemismos.
O tal vestido decotado pode ser simplesmente uma camisola.
A praça para a qual eles vão namorar pode se tornar a cama.
Como já falei, o "cheirando a guardado" representaria a camisola que estava engavetada.

Espetáculo a parte de Chico e Vinícius.
Ah, me esforçarei ao máximo pra não colocar nada de Chico na próxima postagem.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

tanto mar, chico buarque.

Letra censurada:



Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


Letra modificada por Chico após a censura:



Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Composta no final da década de 70, Tanto Mar nos mostra uma espécie de carta escrita por um português no Brasil para outro português em Portugal.
A chave para abrir a análise da música é saber o que se passava, nos anos 70, em ambos os países: regime ditatorial.

No Brasil, Ernesto Geisel assumia a presidência em 74, sendo o sucessor do "Você" (Apesar de Você) de Chico, Emílio Médici; em Portugal, no mesmo ano de 74, era derrubado o presidente Américo de Deus Rodrigues Tomás, que dava continuidade a um regime ditatorial - que durou cerca de 41 anos - ídealizado por António de Oliveira Salazar, o Salazarismo.


Em 25 de Abril de 1974, o regime português foi derrubado por uma revolução popular que ficou conhecida como Revolução dos Cravos. Há várias histórias pro uso do cravo como símbolo da revolução. A versão que li dizia que, ao amanhecer, uma florista levava cravos para a decorar a inauguração de um hotel quando foi surpreendida por um soldado, solidário à revolução, que colocou um de seus cravos na ponta da espingarda, sendo imitado, logo após, por todos os outros.

A primeira letra da música foi censurada no Brasil, obrigando Chico a rescreevê-la mais tarde. Motivo? Não sei. Talvez pra não instigar mais nenhum movimento revolucionário aqui no Brasil, influenciado pelo lusitano. A música foi liberada assim que o movimento em Portugal foi suprimido.



Vou olhar uma de cada vez.

A melodia da música é o Fado, um ritmo português alegre e dançante cuja origem é desonhecida.

Perceba que a primeira letra é escrita toda no tempo Presente, para simbolizar que a revolução está se passando no exato momento da escrita da carta.

Nas duas primeiras estrofes da música censurada já aparecem as palavras firinas - cravo ou flor - que, creio eu, deve ter mexido com os ânimos dos censores:

"Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um
cravo para mim"

"Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma
flor no teu jardim"

Evidente que a festa, a qual Chico - ou o português no Brasil - se refere, é a própria Revolução dos Cravos.

Na segunda estrofe da letra censurada - e da não censurada também -, Chico comenta do imenso Oceano Atlântico que separa os dois países (Brasil e Portugal) para, celebremente, citar uma frase de Fernando Pessoa, poeta português: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Isso aparece no trecho:

"Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar

Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar"

Na última estrofe,

"Lá faz primavera, pá
estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim"


Chico fala da "primavera", do aparecimento das flores, dos cravos, LÁ, em Portugal.
Porém Cá, no Brasil, ele está doente. Doente, ainda, de um vírus chamado Médici.

E a música termina com o português do Brasil pedindo, urgentemente, um cheirinho de alecrim, uma planta portuguesa que exala um aroma forte e agradável , para ajudá-lo respirar melhor, dentre tanta 'fumaça' que circula pelas ruas no Brasil.

Interessante também é o contexto que Chico dá em todas as suas músicas. Em Tanto Mar, ele abusa do "pá" no final das frases, que é uma "corruptela" de 'Rapaz', em Portugal (equivale a um nordestino 'oxe' e a um paulistano 'mano').

Além disso:
usa de verbos no imperativo - tempo muito usado lá;
troca o "aqui" por "cá";
concorda os verbos e pronomes com a 2ª pessoa do singular (tu), como se vê em "...Com a TUA gente...", "...Uma flor no TEU jardim...".

A letra pós-censura não difere muito da pré.

Perceba que agora Chico escreve a segunda letra no tempo Passado, para passar a idéia de uma letra póstuma, do término da Revolução e, acima de tudo, do seu desando: em 25 de novembro de 1975, um golpe militar pôs fim ao PREC (Processo Revolucionário em Curso).

Ele explicita isso na segunda estrofe, fazendo um jogo com "murcharam teu cravo"/"terminaram tua festa":

"Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim"


A mensagem desse trecho é magnífica:
Já murcharam nossa festa, mas certamente esqueceram uma semente em algum canto do nosso jardim.
Podaram nosso Cravo mas, com certeza, esqueceram algumas sementes de Cravo pelo caminho.
Termiram com nossa festa mas, sem dúvida, o espírito revolucionário ainda está vivo.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

morena dos olhos d'água, chico buarque.

Bem, abro o blog com a interpretação de uma canção de Chico, chamada Morena dos Olhos d'água, em homenagem a Clarice Carvalho.
Todas as postagens seguirão esse padrão: música para ouvir; letra da música; minha interpretação.
No final, discorde, concorde, opine, comente.


 Chico Buarque - Morena dos Olhos D'água



Morena, dos olhos d'água,
Tira os seus olhos do mar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.

Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar,
Mas que tem abraço estreito, morena,
Com jeito de lhe agradar.
Vem ouvir lindas histórias
Que por seu amor sonhei.
Vem saber quantas vitórias, morena,
Por mares que só eu sei.

Morena, dos olhos d'água,
Tira os seus olhos do mar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.

O seu homem foi-se embora,
Prometendo voltar já.
Mas as ondas não tem hora, morena,
De partir ou de voltar.
Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também.
Mas meu canto ainda lhe implora, morena,
Agora, morena, vem.

Morena, dos olhos d'água,
Tira os seus olhos do mar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar.


A musa da música é a Eleonora Mendes Caldeira, uma psicanalista de olhos exageradamente verdes, cabelos negros, pele clara pela qual Chico foi muito apaixonado, segundo amigos. Mesmo sendo da "high society", Eleonora sempre foi considerada uma pessoa de uma simplicidade ímpar, muito afável e de uma bagagem cultural pesada, diferente das socialites de Sampa. Ela é a autora do livro "Cultura e Elegância".

Chico não chegou a assumir publicamente que escreveu a canção para ela, mas, timidamente, soltou num dvd (o qual não me recordo com certeza agora) que houve, sim, a existência da musa, mas pediu para que o diretor não colocasse esse trecho da entrevista no dvd, porque sabia que hoje ela é uma senhora e, acima de tudo, muito bem casada!

Chico compôs toda a música com apenas 22 anos, em 1966. A melodia é bem simples e muito tranquilizadora (sem trema agora, né?). É uma melodia bem mar. Vai e vem; sobe e desce. Certa vez, Dorival Caymmi durante uma entrevista foi perguntado sobre Chico e, na sua resposta, fez questão de frizar de que sua (Chico) melhor música é Morena dos olhos d'água.

Vamos à análise.

A letra mostra uma separação porém, claro, nos permite várias interpretações.
Eu acredito em 3 personagens na música: a morena, o homem da morena e o próprio Chico.

A morena.

A morena é revelada logo no começo como uma mulher que sofre, já que na primeira estrofe da letra encontra-se "Vem ver que a vida ainda vale o sorriso que eu tenho pra te dar".
Além disso ela é esperançosa e espera pelo seu homem olhando pro mar, vindo daí os seus olhos de água: olhos verdes da cor da água do mar ou olhos cheio de água de choro, tristeza.
A esperança da morena é o mar. É do mar que vai aparecer o seu homem, é pelo mar que seu homem vai voltar.
E aí, então, aparece a 2ª personagem que é o seu homem.

O homem.

Podemos interpretar o homem da morena como sendo um pescador, um marinheiro, um navegante, um terrestre que se sente em casa no oceano. Vida de marinheiro é vida desgarrada. É aquela coisa de "vou pro mar e volto já".
Na quarta estrofe, Chico, como compositor e personagem, mostra que o homem da morena está a mercê das ondas, falando que o homem dela foi embora, prometendo voltar já, sendo que as ondas não têm hora de partir ou de voltar.

Chico.

A 3ª personagem - o próprio Chico - aparece na segunda e quarta estrofe.
Chico, que não é bobo nem nada, se mostra, nas duas estrofes, "cantando" a morena, se aproveitando da ausência do homem dela.
Perceba na 2ª estrofe:

"Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar,
Mas que tem abraço estreito, morena,
Com jeito de te agradar."


Aí, o Chico-personagem deita o morena em seu próprio peito prometendo nunca trocá-la pelo mar, como o seu homem fez.

"Vem ouvir lindas histórias
Que por teu amor sonhei.
Vem saber quantas vitórias, morena,
Por mares que só eu sei."


Aí parece como uma paquera de pescador. A paquera nas duas primeiras linhas; e o pescador na duas últimas - Vem saber das minhas vitórias (histórias) pelos mares que somente eu sei. As famosas "Histórias de Pescador".

Agora na 4ª estrofe (minha preferida):

"O teu homem foi-se embora,
Prometendo voltar já.
Mas as ondas não tem hora, morena,
De partir ou de voltar."


Como já comentei, aí, o Chico-personagem incita a morena a esquecer do seu homem já que não se pode prever quando ele vai voltar - e se vai voltar.

"Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também.
Mas meu canto ainda te implora, morena,
Agora, morena, vem."


Esse trecho é maravilhoso.
Podemos ver por dois ângulos:

1) Passou o tempo e passou a vela (o barco) na qual estava o homem da morena. E já que ele passou "Agora, morena, vem!!!" hahaha.

2) Entre velas e tempo que passaram pelo mar, valeu por esperar porque "Agora, morena, (finalmente ele) vem"
Claro que o primeiro é mais coerente.

Já que olhos são uma constante nas peças de Chico e a Sua obra é como uma teia-de-aranha (as músicas têm ligações) podemos fazer uma ligação com os olhos de "Carolina"... "Carolina, nos seus olhos fundos guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo..."

E a música termina com o refrão com Chico repetindo o último trecho "Vem ver que a vida ainda vale / O sorriso que eu tenho / Pra te dar.", para provocar mais ainda a "sua" morena.

Início.

Interpretações de todas as formas de arte.
O intuito do blog é basicamente despertar a sensibilidade auditiva e visual, ver o não explícito.


Saudações!